46 CÁLAMO / Revista de Estudios Jurídicos. Quito - Ecuador. Núm. 20 (Enero, 2024): 46-56
ISSN Impreso 1390-8863 ISSN Digital 2737-6133
Frankenstein, ou, o prometeu moderno
Cálamo 20
Enero 2024
FRANKENSTEIN, OU, O PROMETEU MODERNO
Os impulsos da modernidade e o mundo jurídico pós-moderno
FRANKENSTEIN O EL PROMETEO MODERNO
Los impulsos de la modernidad y el mundo jurídico posmoderno
FRANKENSTEIN OR THE MODERN PROMETHEUS
The Drives of Modernity and the Postmodern Legal World
Érika Rigotti Furtado*
Recibido: 18/IX/2023
Aceptado: 28/XI/2023
Resumo
A conjuntura social presente vige em meio à crise da
cultura instaurada, cujos meandros alcançam o Direito,
como expressão dos valores sociais. De modo semelhante,
as manifestações artísticas, como elementos da cultura, são
fontes inestimáveis de conhecimento do pensamento de
uma época, sendo esse o caso de Frankenstein, ou o Prometeu
moderno, de Mary Shelley, por guardar relevantes aspectos
da perspectiva moderna, cujos desdobramentos se fazem
sentir nos dias correntes. Portanto, o presente trabalho
aborda a narrativa de Mary Shelley como obra representativa
do desencadeamento ruptura cultural perpetuada na pós-
modernidade, bem como suas implicações na esfera jurídica.
Palabras clave: Pós-modernidade; Relativismo; Crise da
cultura; Direito; Literatura clássica
Resumen
La actual coyuntura social se desarrolla en plena cri-
sis de la cultura, cuyas complejidades alcanzan al Derecho
como expresión de los valores sociales. Del mismo modo,
las manifestaciones artísticas, como elementos de la cultura,
son fuentes inestimables de conocimiento del pensamiento
de una época, y éste es el caso del Frankenstein o el Pro-
meteo moderno de Mary Shelley, ya que contiene aspectos
relevantes de la perspectiva moderna, cuyas consecuencias
se dejan sentir en la actualidad. Por ello, este trabajo abor-
da la narrativa de Mary Shelley como obra representativa
de la ruptura cultural perpetuada en la posmodernidad, así
como sus implicaciones en el ámbito jurídico
Keywords: Postmodernidad; Relativismo; Crisis de la
cultura; Derecho; Literatura clásica
Abstract
e current social conjuncture is taking place amid
a crisis of culture, the intricacies of which reach the
Right as an expression of social values. Similarly, artistic
manifestations, as elements of culture, are invaluable sources
of knowledge of the thinking of an era. is is the case of
Mary Shelley’s Frankenstein, or the modern Prometheus, as
it contains relevant aspects of the modern perspective, the
consequences of which are felt today. erefore, this study
addresses Mary Shelley’s narrative as a representative work
of the cultural rupture perpetuated in post-modernity, as
well as its implications in the legal sphere.
Palavras-chave: Postmodernity; Relativism; Crisis of
culture; Law; Classical literature
* Profesora de Derecho del Comando da Aeronáutica, Brasil; máster y doctoranda en Ciencias aeroespaciales por la Universidade da Força Aérea
(UNIFA), Brasil. ORCID: 0000-0002-0678-733X. Correo electrónico: furtado0609@gmail.com
Cómo citar este artículo: Rigotti Furtado, Érika. 2024. “Frankenstein, ou, o prometeu moderno. Os impulsos da modernidade e o mundo
jurídico pós-moderno. Revista de estudios jurídicos Cálamo n.° 20: 46-56.
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Érika Rigotti Furtado Cálamo 20
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INTRODUÇÃO
A pós-modernidade insere-se em um cenário
mundializado, perpassado pela instabilidade das
relações políticas e sociais, impactando os aspectos
mais profundos da construção do Direito, onde
se depositam anseios não resolvidos, envoltos nas
questões inerentes à Justiça nos dias correntes, onde
os elementos metafísicos, necessários à sustentação
de sua coerência, permanecem no âmbito de uma
cienticidade não metafísica (Naucke e Harzer 2008).
Nesse sentido, destaca Baumnan (1997, 06) que “o que
se chegou a associar-se com a noção pós-moderna de
moralidade é muitíssimas vezes a celebração da “morte
do ético, da substituição da ética pela “estética” e da
emancipação última” que segue.
Tendo em vista referida perspectiva, o Frankenstein de
Mary Shelley representa uma narrativa de interesse para
a análise dos problemas relacionados ao embasamento
do Direito e da Justiça presentemente, decorrentes do
desencadear da modernidade, ao retratar a postura
moderna voltada à desconstrução dos valores e crenças
precedentes, como forma de erigir um novo mundo,
apoiado na ciência e no gradual desfazimento da
metafísica clássica. Os desdobramentos negativos desse
processo, espraiando-se nos dias correntes, desnudam
uma crise ética, onde vigem as incertezas e a relativização
das virtudes socialmente aceitas, corroborando a
assertiva rmada por Pinheiro (2021, 219) consoante a
qual “em eras de estabilidade moral, a sociedade não se
questiona, a todo momento, o que é o certo e o errado, o
justo e o injusto, como uma pessoa saudável não procura
o médico para a vericação da sanidade de seus órgãos
e funções vitais.
As manifestações artísticas, assim como o Direito,
consistindo em projeções da conjuntura social onde
são criadas, não apenas absorvem como representam
os contornos relevantes do cotidiano da sociedade,
por isso permanecendo indispensável a compreensão
do conceito platônico de mimese. O termo em questão
representa a ideia de imitação, apta a promover o
aprendizado, bem como a fornecer a possibilidade de
participação na essência daquilo que é preexistente
e perfeito. A mimese, embora seja uma reprodução
inferior à forma original, possui a capacidade de
impactar seus observadores, exercendo a boa ou a má
persuasão, segundo a nalidade artística estabelecida.
Conforme Platão (2012) os homens são seres
miméticos, decorrendo o aprendizado da imitação dos
comportamentos observados. A mimese encontrada
no ambiente das expressões artísticas busca reproduzir
as ações e os sentimentos humanos, no entanto, para
Platão (2012), a mimese poética, quando consubstancia
uma imitação inferior, incapaz de engrandecer a alma,
não possui nenhum adorno positivo, por isso sendo
famoso o episódio da República, onde Sócrates expulsa
os poetas de sua cidade ideal. Platão entendia que a
mimese poética, quando afastada sobremaneira das
Ideias, ao utilizar sua linguagem usual de simulacro
das formas, resultaria em uma concepção deturpada
da realidade. O rechaço à mimese poética se encontra
no Livro II da República, quando Sócrates, o herói
platônico por excelência, arma que as poesias não são
convenientes à educação dos jovens, quando incentivam
valores e comportamentos inadequados, posto pautados
pelo engano. Do mesmo modo, embora não cuidando
especicamente das manifestações artísticas, a alegoria
da caverna de Platão consiste em um relevante alerta,
máxime no conturbado contexto da pós-modernidade,
pois o mergulho irreetido no ambiente da caverna
e suas sombras conduz os espectadores a uma visão
distorcida da realidade, posto baseada, tão-somente,
nas parcas reproduções do ambiente externo.
Considerando referidas noções elementares, bem
como as dissonâncias vivenciadas pela sociedade
pós-moderna, cujas raízes remontam às práticas
desconstrutivas encetadas na era moderna, o presente
trabalho tem como foco a obra ccional de Mary Shelley,
intitulada Frankenstein, ou o Prometeu moderno,
publicada pela primeira vez no início do século
XIX, justamente por trazer em seu âmago aspectos
relevantes da temática disruptiva acima apontada, onde
os laços entre a vida cotidiana e a estrutura metafísica
precedente começam a ser desfeitos. Por essa razão,
tem-se como válida a observação feita por Pinheiro
(2021) quanto ao fato de a crise moral moderna,
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Frankenstein, ou, o prometeu moderno
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sendo igualmente uma crise cultural, relaciona-se
com a perda dos signicados simbólicos capazes de
orientar o indivíduo na sociedade e no tempo, por isso
alcançando todas as expressões da cultura humana,
entre as quais se encontra o Direito. Demais disso,
a proposta considera a relevância da abordagem
losóca do Direito, ao permitir perscrutar o mundo
com um olhar crítico, voltado ao esforço de buscar
novos caminhos para a reestruturação dos preceitos
metafísicos indispensáveis à retomada da compreensão
do Direito como a atribuição a cada um daquilo que
lhe é devido, respaldado pela ideia da Justiça como a
ferramenta apta a realização desse Direito no âmbito
da sociedade (Villey 2019b).
Por conseguinte, o presente trabalho pretende
demonstrar, a partir dos elementos extraídos do livro de
Mary Shelley, a maneira conforme a qual a modernidade
passou a questionar as estruturas e valores precedentes,
1 Richard Malcolm Weaver Jr. (1910-1963) foi um historiador, intelectual e lósofo norte-americano do século XX, considerado um dos intelectuais mais
bem-educados de sua época. Em As Ideias têm Consequências, publicado em 1948, analisa a decadência da sociedade moderna como resultado dos pen-
samentos que mergulham o homem em precipício sem m. “O livro foi planejado como um desao às forças que ameaçam os alicerces da civilização
(Weaver 2012, 07).
no escopo de vericar de que forma referido panorama
se reete na conformação do Direito na atualidade.
Possuindo como foco central a análise da narrativa
envolvendo a história de Frankenstein, o estudo em
destaque apresenta natureza exploratória, desenvolvida
por meio de pesquisa bibliográca, apoiado, em especial,
nas análises rmadas por Richard M. Weaver Jr.
1
, na obra
intitulada “As Ideias têm Consequências” (2012), onde
apresenta o cenário da modernidade e da dissolução do
Ocidente por meio de um esforço dedutivo, partindo
do pressuposto “de que o mundo é inteligível, de que
o homem é livre, e de que as consequências que agora
estamos sofrendo são produto não da necessidade
biológica ou de qualquer outro tipo, mas de escolhas
tolas” (Weaver 2012, 9). Assim, a abordagem inicial
cuidará do Frankenstein na condição de Prometeu
moderno, instaurado no âmbito da modernidade,
passando-se aos desdobramentos relacionados ao
Direito, no ambiente pós-moderno.
FRANKENSTEIN E A MODERNIDADE
Frankenstein, ou o Prometeu Moderno (2022), obra
ccional de Mary Shelley, publicada pela primeira
vez de forma anônima, em 1818, embora tenha
alcançado imediato sucesso entre o público, não foi
bem recebida pela crítica. A história, ambientada
na Suíça do século XVIII, narra as desventuras
do jovem Victor Frankenstein que, envolto nas
brumas do êxtase cientíco em ascensão, busca
freneticamente comprovar a possibilidade de gerar
a vida articialmente, idealizando e realizando a
concepção de uma criatura forjada a partir da fusão
dos membros de diversos cadáveres. Todavia, diante
da constatação da insanidade cometida, o jovem
repudia sua criação e passa a sofrer uma profunda
crise existencial. O monstro de Frankenstein, rejeitado
por seu criador e frustrado com a repulsa causada aos
seres humanos perante a sua gura, dedica sua infeliz
existência à vingança, eliminando sadicamente entes
queridos do jovem cientista.
Em um inusitado encontro, nas geladas montanhas da
Suíça, Frankenstein propõe ao seu criador um acordo,
a concepção de uma criatura do sexo feminino para
lhe fazer companhia, como medida de estancamento
dos assassínios. Em uma atitude de desespero, movido
pelo medo e pelo remorso, e não propriamente pelo
mesmo estofo cientíco de antanho, o jovem assente
com o desejo do monstro, concebendo secretamente
outro ser. Entretanto, temendo as consequências para
a Humanidade da presença de duas criaturas com
tendências malécas, destrói seu trabalho, antes de
lhe conceder a vida, causando a ira de Frankenstein e
provocando o desfecho trágico de sua própria vida.
Para além dos contornos góticos presentes no livro de
Mary Shelley, responsáveis por inserir a obra entre os
gêneros de cção e terror, sua narrativa demonstra a
transição entre os pensamentos clássico e moderno e
seus desdobramentos, retratando a passagem destacada
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por Weaver (2012) quanto ao fato de a natureza, antes
considerada como imitadora de um modelo transcendente
e, por isso, parte de uma realidade imperfeita, ter passado
à condição de detentora dos princípios de sua própria
construção e de seu comportamento. Nesse sentido,
possui inconteste simbolismo a ideia da possibilidade
humana de criar vida de forma articial, especialmente
a partir da manipulação da energia elétrica, mencionada
de maneira indireta durante o processo da concepção
do monstro de Frankenstein, e representativa das
possibilidades cientícas advindas da modernidade. Do
mesmo modo, a obsessão do jovem cientista em provar
a possibilidade de superar a natureza, por meio de
mecanismos engendrados pela racionalidade humana,
é simbolizado pelo momento disruptivo em que chega
à universidade, ainda envolto em suas convicções
antigas, e é confrontado pelas palavras proferidas por
seu professor, nos seguintes termos:
Cada minuto –prosseguiu M. Krempe com
entusiasmo– cada instante que você desperdiçou
com esses livros foi completa e absolutamente
perdido. Você sobrecarregou a sua memória com
sistemas superados e nomes inúteis. Santo Deus!
Em que ilha deserta você viveu, onde ninguém teve
a gentileza de lhe informar que esses devaneios,
que absorveu com tanta avidez, são velhos de mil
anos e tão bolorentos quanto antigos? (Shelley
2022, 69)
Por conseguinte, a alcunha de “Prometeu moderno,
atribuída a Frankenstein, não decorre do acaso, pois
Prometeu era um dos titãs gregos, uma raça gigantesca
vivente na Terra antes dos seres humanos incumbido,
juntamente com seu irmão, Epimeteu, da criação
do homem. Tendo Epimeteu distribuído as diversas
potencialidades entre os demais seres criados, e nada
tendo restado para acomodar o homem como a
criatura mais elevada, recorreu a seu irmão, Prometeu,
que subtraiu de Minerva o fogo da sabedoria e o deu
ao homem (Bulnch 2018). O Prometeu moderno
consubstanciaria, assim, o símbolo dos saberes da
modernidade, da superação das crenças anteriores e da
exacerbação da potência do saber humano, corroborando
o que Weaver (2012) considera como a transição da ideia
medieval do aprendizado e do conhecimento como
um caminho para a humildade para a postura oposta,
inserida na fórmula consoante a qual conhecimento é
poder. Nas palavras do autor:
Se a nalidade do conhecimento é a dominação,
é difícil supor que aqueles que o detenham
quem indiferentes a sua própria inuência. Ao
contrário, eles se tornam arrogantes e procuram
alcançar o sucesso no mundo material [...], e isso
aumenta seu egoísmo e sua autoconsideração.
Essa é a breve história de como o conhecimento
deixou de ser um meio para a redenção espiritual
e passou a ser fundamento do orgulho intelectual.
(Weaver 2012, 82)
Inegável, igualmente, a inuência do pensamento da
época na obra de Mary Shelley, quando ainda ecoavam
as ideias iluministas e suas efusivas promessas de
transformação da sociedade. Sua mãe havia vivido
intensamente os ideais do Iluminismo que inuenciaram
a Revolução Francesa (1789), abraçando-se fortemente
aos ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade,
propagados pelos líderes reformistas. Embora não
lhe tenha sido possível acompanhar o crescimento da
lha, pois faleceu dez dias após dar à luz, suas obras
seguramente inuenciaram a construção do pensamento
da jovem Shelley.
Importante destacar, pois, que as marcas deixadas no
contexto político e social do Ocidente, desde o advento da
Renascença, culminaram nos desdobramentos sentidos
presentemente no contexto da pós-modernidade. Por
isso, é possível considerar a obra de Mary Shelley em
destaque como fruto dos meandros da modernidade,
onde transitavam novas ideais e o afã de superação das
antigas crenças e do modo de vida do passado. Dessa
maneira, Frankenstein simboliza tanto os anseios da
modernidade, como as crescentes ondas voltadas à
humanização e à secularização da sociedade ocidental,
reetindo tal perspectiva na corrente perda de sentido
nas relações humanas observadas na atualidade.
A gura do Prometeu moderno representa uma mimese
distorcida, por não encerrar em seu âmago os aspectos
mais elevados da alma humana, consistindo em uma
criatura monstruosa, incapaz de assimilar os sentimentos
de piedade, resignação e disciplina, podendo ser associado
à descrição do homem pós-moderno feita por Weaver
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Frankenstein, ou, o prometeu moderno
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(2012), consoante a qual as decisões baseadas no anseio
por conforto material e no intento de apagar qualquer
relação com o mundo que não pode ser provado, termina
na busca constante por valores transitórios.
Por simbolizar a vanguarda do pensamento moderno,
Frankenstein se apresenta como uma manifestação
artística onde é possível visualizar o egoísmo do homem
moderno, revestido de irresponsabilidade e pretensão,
isolado dos valores e das virtudes. Isto porque, sob o
manto da liberdade moderna, o indivíduo se importa,
tão-somente, com os seus direitos, sendo incapaz de
conceber a ideia de obrigação, como uma imposição
proveniente das convenções sociais, bastando, pois, seus
desejos. Dessa maneira, conforme se observa na obra
em destaque, a promoção pessoal, ao se tornar objetivo
supremo do jovem cientista, termina por excluí-lo da
comunidade. Esse rompimento, conforme aduz Weaver
(2012), não diz respeito especicamente ao Estado e suas
normas de coerção, mas à ideia de comunidade espiritual,
onde o homem pode experimentar os sentimentos de
solidariedade. Dessa maneira, o jovem Frankenstein,
absorto em seu afã de provar a possibilidade de criar
a vida em um laboratório, representa a própria repulsa
da modernidade quanto à incompreensão dos grandes
mistérios da existência, estabelecendo a racionalidade
humana como o limite único à conquista de todo o
conhecimento.
Demais disso, cabe notar que o reconhecimento
da conexão entre o passado, o presente e o futuro
desempenham relevante papel no contexto da
sociedade, ao estabelecer um vínculo de continuidade
e referência, por isso sendo problemática a ruptura
promovida a partir da modernidade, conforme se
extrai da narrativa em destaque. Segundo Ortega y
Gasset (2022), o futuro se apresenta sempre como uma
visão problemática, posto condicionado por inúmeras
possibilidades ainda inconcretas, de maneira que o
passado signica a única referência sólida a nortear a
vida humana, cujo conhecimento se torna indispensável
à estruturação do presente, bem como à condução
segura dos passos seguintes. Arma, pois, que uma das
grandes possibilidades acerca da grave desorientação
2 O nominalismo, conforme esclarece Villey, representa uma estrutura lógica, ode se promove a distinção clara entre coisas e seus signos, portanto, “as
coisas só podem ser, por denição “simples, isoladas, separadas; ser é ser único e distinto; Pedro, Paulo, os indivíduos são e, na pessoa de Pedro, há
apenas Pedro, e não alguma outra coisa que dele se distinga “realmente” (Villey 2019a, 229).
do ser humano com relação a si mesmo na atualidade
decorra do fato de, nas últimas quatro gerações, o
homem médio, embora sabedor de inúmeras coisas, não
mais possua qualquer conhecimento sobre a história.
Não nos demoremos: a realidade é nossa vida, e
esta é como é, tem a estrutura que tem, porque as
anteriores formas de vida foram tais e como foram
em linha concretíssima de destino único. Por isso
não se pode entender rigorosamente uma época
se não se entendem todas as demais. O destino
humano constitui uma melodia em que cada nota
tem seu sentido musical, colocada em seu lugar
entre todas as demais. (Ortega y Gasset 2022, 73)
Em termos de construção losóca, Weaver considera que
esse processo de rejeição do passado alcança a perspectiva
metafísica de forma marcante na modernidade, pois a
partir de então, “a negação de tudo quanto transcenda
a experiência signica, inevitavelmente, a negação da
verdade [...]. Com a negação da verdade objetiva, não
há como escapar do relativismo do homem como
medida de todas as coisas” (2012, 10). Esse movimento
de desconstrução, no entanto, possui raízes mais
profundas, consoante o autor, extraídas do nominalismo
construído por Guilherme de Ockham (1287-1347), que
negava a existência real dos universais, promovendo
o rebaixamento destes a meros nomes a serviço da
consciência humana
2
. Segundo Villey, Ockham foi o
fundador de uma nova losoa, de uma maneira nova
de losofar “destinada a fazer grande fortuna durante
todo o período nal da Idade Média e mesmo depois:
é o nominalismo moderno, e o nominalismo, por si só,
signica em losoa do direito uma revolução radical”
(2019a, 223).
Esse movimento de expansão do valor da razão
empírica pautada pelo cienticismo, desprendida,
ademais, da metafísica clássica, auxilia na compreensão
do Frankenstein de Mary Shelley, bem como na
visualização dos resultados dessa marcha nos dias
correntes. Se sob a perspectiva da autora, o homem é
capaz de criar de forma técnica a vida, os limites para as
ações humanas parecem não encontrar um paradeiro,
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por isso armando Weaver que “à expulsão do princípio
da ininteligibilidade na natureza seguiu-se o abandono
da doutrina do pecado original” (2012, 13). Seguindo
o raciocínio daí decorrente, Weaver (2012) conclui que
sendo a natureza física a totalidade e dela fazendo parte
o ser humano, tona-se impossível conceber este como
portador de algum defeito constitucional, advindo suas
ações malécas, por conseguinte, da ignorância ou de
alguma privação social. Deste modo, a vida do monstro
Frankenstein retrata os subterfúgios do pensamento
humano, capaz de engendrar escusas para sua própria
barbárie, ancoradas no relativismo
3
sustentado pelas
perspectivas concebidas na modernidade.
O Prometeu moderno expõe o caminho para a
relativização dos valores que, conforme Bloom (1989),
por consistir em uma larga mudança na forma de
se perceber as coisas morais e políticas, pode ser
comparada às transformações geradas pela substituição
do paganismo greco-romano pela religião cristã. Nesse
contexto, a obra de Nietzsche (1844-1900) apresenta
marcada relevância, pois a partir da interpretação de seus
textos nasce o niilismo contemporâneo, umbilicalmente
atrelado ao relativismo. A palavra niilismo deriva do
latim nihil, que signica nada. Apesar de um fenômeno
multifacetado, está vinculado, na atualidade, à corrosão e
à desvalorização, à morte do sentido. A falta de nalidade,
de resposta ao “porquê, onde “os valores tradicionais
depreciam-se; princípios e critérios absolutos dissolvem-
se” (Pecoraro 2023, 04).
3 “O relativismo não é uma perspectiva particular, mas uma ampla variedade de pontos de vista que compartilham duas ideias: o pensamento, o julgamen-
to, a experiência ou a realidade são de alguma maneira relativos a algo e não há uma perspectiva que seja melhor do que a outra” (Kleiman 2014, 176).
O lósofo alemão, famoso por sua frase “Deus está
morto, acreditava na constante necessidade das pessoas
de identicar uma fonte de valor e seu signicado, e
que a ciência, não sendo esta fonte, abria espaço para
outras formas, como o nacionalismo agressivo. Nietzche
armava que a crença na ideia da verdade como a
existência de apenas uma forma de avaliar algo, era
prova da inexibilidade do processo mental humano,
visualizando, por isso, na exibilidade e na abordagem
das questões por diversos ângulos, a sanidade da
mente. Dessa maneira, contribui para o niilismo, ou a
indiferença diante da vida, somada à negação de todos os
valores e crenças, cabendo aqui a interpretação rmada
por Pinheiro acerca do tema:
Do ponto de vista losóco, a crise da cultura
se manifesta, sobretudo, com o niilismo, com a
negação radical do fundamento último da realidade,
o primeiro que estrutura toda a arquitetura do ser
[...]. Por isso, o fenômeno da morte de Deus, que
não se reduz apenas à secularização da sociedade,
à perda da fé, à neutralização da formação religiosa
e à progressiva diminuição da força normativa da
religião na vida moral e social, signica, sobretudo,
a crise da metafísica. (Pinheiro 2021, 120)
Diante deste panorama, questiona-se de que forma
referido panorama se reete na conformação do Direito
na atualidade.
O LEGADO DE FRANKENSTEIN AO MUNDO PÓS-MODERNO
Um legado, sob a ótica conotativa, representa aquilo
que é passado de uma geração a outra, num movimento
de continuidade e manutenção de perspectivas e
valores. Nesse sentido, a obra de Mary Shelley (2022),
enquanto manifestação artística, pode ser considerada
como uma fonte de inspiração para as obras seguintes,
moldadas sob a égide de semelhante gênero literário,
propiciado variadas adaptações da história do monstro
Frankenstein, às vezes caricaturado como uma ingênua
criatura incompreendida. De outro lado, por guardar
em seu âmago as características do humanismo e da
secularização próprios da modernidade, o legado da
obra alinha-se às demais artes modernas, inspiradas pelo
movimento disruptivo de rejeição do passado e projeção
egoística do conhecimento. Nesse contexto, sendo o
Direito resultante dos anseios sociais e representativo
dos valores em voga, clamando por uma estrutura
metafísica capaz de lhe conferir sentido, o legado da
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modernidade em seu ambiente, conforme decorre da
obra em comento, impacta a maneira conforme a qual
o bom e o justo passam a ser percebidos pela sociedade.
Segundo apontado acima, a desconstrução dos liames
presentes na metafísica clássica quanto à capacidade
intelectiva humana resultou no estabelecimento do
relativismo dos valores na sociedade contemporânea.
Esse processo, encetado pelo nominalismo de
Ockham, auxiliará na estruturação da ideia de direito
subjetivo individual, resultante do vazio ocasionado
pelo afastamento da lei natural (Villey 2019a). Por
conseguinte, “a ordem social aparece agora constituída,
não por uma rede de proporções entre objetos partilhados
entre as pessoas, mas por um sistema, por um lado, de
poderes subordinados uns aos outros e, por outro, de
leis provenientes dos poderes” (Villey 2019a, 287).
Dessa maneira, a fonte dos direitos passa à vontade
legislativa, paulatinamente desprendida de instrumentos
valorativos ancorados em premissas decorrentes
da realidade, pois a vontade do legislador, uma vez
representativa da “vontade geral” é que passa a ditar
o direito, segundo aquilo percebido como uma
prerrogativa decorrente do sujeito, ou, um direito
subjetivo individual. Importante notar que a concepção
da vontade geral surge no que Strauss (2016) classica
como segunda onda da modernidade, construída por
meio da perspectiva rousseauniana, consoante a qual o
ser humano, observado a partir do estado de natureza,
não detém uma moralidade precedente. Por conseguinte,
a vontade geral, servirá como forma de restauração das
condições de moralidade, pois nela serão depositados
todos os fundamentos do dever ser, desprendido, assim,
em absoluto, do ser.
A segunda onda da modernidade dará continuidade
a um movimento inaugurado por Maquiavel (1469-
1527) e a armação do realismo político, sendo
fortemente marcado, ainda, pela estrutura jurídico-
política concebida por omas Hobbes (1588-1679)
e seu Leviatã. No entanto, consoante destaca Strauss
(2016), nem mesmo Hobbes ousou negar a lei natural
ou moral como o fez Rousseau, ao atribuir à vontade
geral a validade exclusiva como dever ser. Dessa
maneira, conclui Strauss que “a razão toma o lugar
da natureza, sendo este “o signicado da armação
de que o dever ser não tem qualquer base no ser”
(2016, 103).
Demais disso, conforme mencionado alhures, a
modernidade proporcionou o afastamento da ideia
do pecado original, estabelecendo que a maldade
humana decorre de fatores externos. Assim, embora
Hobbes não seja otimista com relação à natureza
humana, a concebe segundo os preceitos do estado de
natureza, onde a anarquia imperante é subjugada pelo
acolhimento da autoridade soberana, cujo controle
sobre os súditos apoiar-se-á na construção de uma
legislação derivada do pacto originário, fundamentado
nas liberdades naturais e, por isso, no indivíduo (Villey
2019a).
A perspectiva hobbesiana, por conseguinte, abre o
caminho para as transformações seguintes, voltadas
à efetivação dos direitos tidos como naturais e,
portanto, subjetivos, nas legislações dos Estados, mais
tarde erigidos à condição de direitos fundamentais,
indissociáveis do texto constitucional. O movimento em
questão, embora apresente especial relevância no tocante
ao reconhecimento da necessidade de resguardo do
cidadão perante a autoridade estatal, quando somado ao
relativismo e ao niilismo presentes na pós-modernidade
enseja a possibilidade de distorção da própria ideia de
Justiça. Conforme aduz Pecoraro:
é possível considerar o niilismo um movimento
positivo” —quando mediante um labor de crítica
e desmascaramento nos revela a abismal ausência
de cada fundamento, verdade, critério absoluto
e universal e, portanto, convoca-nos diante da
nossa própria liberdade e responsabilidade,
agora não mais garantidas, nem sufocadas ou
controladas por nada. Pode-se considerá-lo
também um movimento “negativo”— quando
a acentuar-se, nessa dinâmica, são os traços
destruidores e iconoclastas, como os do declínio,
do ressentimento, da incapacidade de avançar, da
paralisia, do “tudo-vale” e do perigoso silogismo:
se Deus (a verdade, o princípio) está morto, então
tudo é permitido. (Pecoraro 2023, 4)
Nesse sentido, referido fenômeno consiste em um
estágio perigoso na vivência humana, revestindo-se
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de alguma utilidade quando lança o alerta acerca da
proximidade de um abismo existencial e social (Bloom
1989), pois o homem, ao se defrontar com sua situação
verdadeira poderá experimentar o desespero suicida,
ou o impulso em direção à reconstrução dos sentidos.
Dessa maneira, as engrenagens envoltas no universo
do Direito podem contribuir para a exacerbação das
atitudes desesperadas, ou fomentar as transformações
em prol da justiça, não obstante dependa de maneira
inafastável do resgate dos valores e das virtudes, bem
como dos fundamentos da metafísica.
Valendo-se do exemplo de Frankenstein, importa
notar que a autora narra seus momentos iniciais de
vida embalados pela ideia de desamparado e abandono,
bem como de sujeição ao repúdio público, armando
o sofrimento decorrente do isolamento, em função de
sua aparência monstruosa. Assim, incompreendida e
repudiada, a criatura direciona sua ira ao seu criador,
eliminado de forma covarde pessoas inocentes.
Nesse sentido, o relativismo em voga poderia julgar
adequada a reação de Frankenstein, especialmente
considerando a negação do pecado original e a
consequente atribuição à sociedade dos motivos e
justicativas para as ações atrozes. Nesse sentido,
relevantes as palavras de Weaver, acerca dos aspectos
da modernidade, diretamente ligados à relativização
dos valores, senão vejamos:
Depois de ter deduzido que o homem é
inteiramente moldado pelas pressões ambientais,
tornou-se obrigatório estender a mesma teoria da
causalidade às instituições humanas. Os lósofos
sociais do século XIX encontraram em Darwin
um poderoso apoio para a sua tese de que os seres
humanos agem sempre por meio de estímulos
econômicos, e foram eles que completaram a
abolição do livre-arbítrio. (Weaver 2012, 12)
Por conseguinte, encontrando-se a justiça entre as
instituições humanas, importante considerar que as
ações, suas causas e efeitos não devem ser relativizados,
pois mesmo o monstro Frankenstein, uma vez
representando uma mimetização do ser humano, a partir
do ato de sua criação, assegurou seu livre-arbítrio, onde
a inarredável possibilidade de escolher entre fazer o bem
ou propagar o mal. Tanto assim, a própria personagem
evoca a consciência de sua fúria em uma interessante
passagem da obra, onde demonstra o momento prévio
ao cometimento de um de seus atos criminoso:
Ao xar os olhos no menino, vi algo brilhando
no seu peito. Peguei; era o retrato de uma mulher
extremamente encantadora. A despeito da minha
malignidade, ele me amoleceu e atraiu [...]; mas
num instante minha fúria retornou: lembrei
que estava para sempre alijado dos deleites que
criaturas belas como aquela poderiam conceder.
(Shelley 2022, 249)
Nesse contexto, importante frisar que o direito consiste
no liame da ação política, traçado de maneira a permitir
a exibilização decorrente do processo interpretativo.
Todavia, quando se fazem rotas as fronteiras jurídicas
da política, ou incompatibilizadas com as interpretações
escorreitas dos textos normativos, surge o que Pinheiro
(2021) reconhece como “hegemonia losóca do
perspectivismo, onde os fatos desaparecem, restando
apenas as interpretações. Desde modo, embora
possamos nos compadecer dos sofrimentos do
monstro concebido pelo jovem doutor Frankenstein,
a prevalência do perspectivismo em casos similares
levaria à perda de todo o sentido da construção
jurídica retributiva, onde há uma resposta esperada
pela sociedade diante do cometimento de um ato de
violação das regras de convivência.
Retomam-se, então, os ensinamentos de Weaver (2012)
sobre o problema da cultura e das ideias, onde o Direito
circunscreve-se, pois arma haver três níveis de reexão
consciente inerentes a um homem pertencente a alguma
cultura, ou seja, as ideias especícas sobre as coisas,
as crenças e convicções gerais, e a visão metafísica
do mundo. Assim, assevera que “sem uma visão
metafísica é impossível pensar em homens vivendo
justos harmoniosamente durante determinado período
de tempo. Tal visão carrega consigo uma avaliação,
que é o laço da comunidade espiritual” (Weaver 2012,
27). Não sendo a razão capaz de justicar-se por si
mesma, a origem de uma cultura, para além do mero
consentimento inicial, traz consigo o orescimento
de fortes sentimentos de dever moral dirigido ao
mundo, não se resumindo estes a uma perspectiva
sentimentalista. No entanto, a perda da visão metafísica
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do mundo, com a ascensão do ser humano à condição
de “super-homem, levou à perda do sentido das coisas,
privando os indivíduos do exercício do autocontrole,
anteriormente possibilitado pelo treinamento na
façanha da abstração, pois o homem acostumado a
observar as coisas do ponto de vista da eternidade nutre
um profundo respeito às formas, pois reconhece nelas a
durabilidade (Weaver 2012).
Em uma sociedade onde os valores caminham no
sentido da relativização, posto desprovidos do esteio da
constatação da prevalência do eterno, corre-se o risco de
se ver deturpada a ideia de justiça. Se nada é justo e, ao
mesmo tempo, tudo é justo, então, não é possível armar
que exista nesta sociedade uma medida coerente acerca
do bem e do mal. Se a exibilização da interpretação
das normas leva à perda do senso de justiça, a cultura
rompe-se rumo à barbárie, onde os consensos morais
sobre o mundo são postos de lado, em nome da armação
indiscriminada das vontades individuais. Nesse sentido,
a crise moral pode ser concebida como a base da crise
política por reduzir toda autoridade a uma retórica de
poder. “Na origem dessa indistinção entre autoridade e
poder reside a perda da distinção moral entre relações
sociais manipuladoras e não manipuladoras, que
desponta do subjetivismo” (Pinheiro 2021, 103).
Dessa maneira, Frankenstein, ou o Prometeu moderno,
não brindou o ser humano com a luz da sabedoria,
conforme o fez o titã grego, ao subtrair o fogo de
Minerva, do contrário, ampliou a escuridão da condição
humana, agregando mais caos à existência do homem,
privado de uma perspectiva metafísica capaz de o fazer
apreender sua nitude e pequenez diante da eternidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mary Shelley é fruto do relacionamento entre
Mary Wollstonecra e William Godwin, tendo nasci-
do em 30 de agosto de 1797. Perdeu sua mãe dez dias
após ter vindo ao mundo, por isso sendo criada por
Mary Jane Clairmont, desposada por seu pai pouco
tempo depois, dado seu temor de criar a lha sem
uma presença feminina. Shelley, no entanto, não gos-
tava da madrasta, por julgá-la muito regrada (Gearini
2020). Escreveu Frankenstein aos 19 anos, após passar
um feriado em Genebra, na companhia de seu espo-
so, onde também estiveram presentes Lorde Byron, e
o médico e escritor John Polidori. A história de seu
monstro ganhou notoriedade, tendo sido adaptada
para o teatro e para o cinema, em diversas versões.
A obra de Mary Shelley abriga importantes referências ao
ambiente cultural do século XVIII, quando é ambientada,
somadas aos próprios meandros socioculturais
vivenciados pela autora. Nesse sentido, o Frankenstein
representa a transformação do pensamento losóco,
iniciada com o Renascimento, pontuada pelas apostas
cientícas como caminho para a solução dos infortúnios
humanos. Conforme apontado acima a arte é uma forma
de mimese, imitando os meios, as formas e os métodos
extraídos da realidade observada (Aristóteles 2013),
de maneira que as manifestações artísticas traduzem
os valores de uma sociedade, podendo revestir-se
de elementos construtivos ou destrutivos, segundo a
qualidade da criação mimética. Nesse sentido, “o poeta é
um ngidor; nge tão completamente, que chega a ngir
que é dor, a dor que deveras sente” (Pessoa, apud Fuks,
2023).
Assim, ao ngir ser possível a monstruosa criação de
Frankenstein, Mary Shelley traduz o pensamento de seu
tempo, mimetizando a realidade das transformações
sociais, pontuadas pelo humanismo e pela secularização
modernos. Posto que as ideias tem consequências,
conforme aduz Weaver (2012), o abandono dos valores
antigos em prol da visão moderna não encerrou seus
resultados na construção de obras de cção, pois os
impulsos da modernidade se reetem fortemente nos
dias correntes.
A história da substituição do transcendentalismo
religioso e losóco foi contada várias vezes, e por
ter sido contada comumente como uma história do
progresso é muito difícil hoje fazer com que as pessoas
–em qualquer quantidade– vejam suas implicações
contrárias. Contudo, constatar a veracidade da
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decadência é o dever mais premente de nossa época,
porque não podemos combater aqueles que se tornaram
vítimas do otimismo histérico antes de demonstrar
que a decadência cultural é um fato histórico que pode
ser constatado e que o homem moderno está a ponto
de dissipar a herança que recebeu. (Weaver 2012, 17)
Conforme assevera Zimmermann (2022), embora
seja difícil conceituar a pós-modernidade, o termo
pode ser tomado como a perspectiva relativa aos
questionamentos teóricos sobre a objetividade da
verdade e do conhecimento, pois “no ocidente, a ideia
de verdade objetiva está tradicionalmente associada
à compreensão da relação entre o mundo real e as
armações correspondentes a ele.” Entretanto, continua
ao autor “os pós-modernistas alegam que não existe
verdade objetiva alguma, de modo que tudo aquilo
que sabemos é pessoal e está sujeito ao ambiente social
(Zimmermann 2022, 409).
Desse modo, resta a relevância do resgate dos valores
sociais como caminho necessário ao robustecimento
do Direito enquanto ferramenta apta a promover a
renovação das virtudes do bom e do justo como elementos
indispensáveis à conformação da justiça, por isso sendo
relevante repensar a estrutura social pós-moderna,
sob pena de se ver a Humanidade transformada em
um conjunto de criaturas disformes, perdidas entre
sentimentos de dúvida, ansiedade, ressentimentos e
ira.
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